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Por que continuar a pagar a escola do meu filho?

“Há mortes evitáveis na pandemia, e a morte da escola é uma delas”
Texto de Alexandre Coimbra Amaral, Psicólogo do programa Encontro com Fátima Bernardes da Rede Globo.

Quando nos dissemos “feliz ano novo” na virada que aconteceu há pouco mais de quatro meses, não imaginaríamos a complexidade que seria construir a sensação de felicidade em 2020. Estamos vivendo o momento mais desafiador de toda a existência, independentemente da idade que tenhamos. Nunca fomos subtraídos de tantas situações e sensações até aqui. Vivemos a privação da liberdade de ir e vir (ainda que ela tenha uma finalidade humanitária e socialmente responsável, a única saída científica que temos até aqui para a convivência na pandemia), temos que usar máscaras para as poucas saídas ao mundo, tememos adoecer ou precisar de qualquer instituição hospitalar, precisamos administrar uma dose extra de assepsia às atividades mais cotidianas, não podemos abraçar quem está fora de casa, temos que guardar distâncias de qualquer humano por ser fonte potencial de transmissão do vírus em seu estado ainda assintomático. E a lista poderia ganhar todo o espaço da coluna, basta que você feche os olhos e enxergue como era a sua vida há três meses, e toda a diferença para o que ela se transformou hoje.

Uma das maiores perdas está sendo vivida pelas crianças. Elas não têm o espaço da escola, que lhes servia de cimento para seus pés correrem, para suas mãos criarem, para seus cérebros pensarem e para seus corações se afetarem com as histórias e brincadeiras dos colegas e professores. A escola, este lugar em que nossos filhos passavam pelo menos um turno de seus dias, e que reunia um tanto de sua identidade, está fechada por tempo indeterminado. Aquilo que era espaço lúdico e de aprendizagem passou a ser uma zona de risco de contágio. Embora as crianças sejam em tese grupo de baixo risco dentro da pandemia, podem ser transmissoras para os familiares que podem ser mais vulneráveis. A escola passou a ser lugar de perigo. Que avesso do avesso do avesso do avesso. Um lugar dos mais sagrados na vida de uma criança, não obstante todas as críticas que possamos ter às suas formas arcaicas de continuar funcionando, agora é um lugar que pode aglomerar – outro verbo que mudou o seu significado para o avesso. Antes era sinônonimo de encontro ou festa, hoje é parte dos medos que nos assombram. A estranheza passou a morar nas escolas fechadas e escuras.

A vida que ali existia tenta ser transmutada para as plataformas virtuais. É o que temos, e é louvável o esforço das instituições de ensino para adaptar as suas necessidades de construção do conhecimento a estes lugares de risco zero para o encontro humano de hoje. Como tudo isto nos pegou de surpresa, é inegável que há dificuldades maiúsculas nesta transposição da escola para o online. Há faixas de idade que simplesmente se mostram quase ou totalmente incompatíveis com este método. 

Há crianças que não se adaptam, que vivem um luto ambivalente daquilo que não têm mais, e não conseguem aderir ao que lhes é possível ter. Há mães e pais exaustos, tendo que compatibilizar suas inúmeras atividades profissionais também virtualizadas com o acompanhamento dos filhos na nova estrada de ensino e aprendizagem. Estrada esburacada essa, com poucas luzes em muitos lares. Mães e pais se sentem vivendo os papéis das professoras, e inclusive aproveitam para honrá-las por seu papel hercúleo de manter a atenção e o interesse de uma sala de aula durante todo o ano, em conteúdos que pouco podem interessar aos estudantes. Crianças se frustram porque querem a sua vida de volta, querem o grupo, querem o abraço da galera, querem a gargalhada durante a aula, querem a delícia de receber um olhar de admiração da professora. Há perdas por todos os lados, há perdas em tudo o que eu vejo.

Depois de dois meses de quarentena, estamos todos com as emoções transbordando, oscilando da esperança ao desespero em questão de horas. A escola passa a ser questionada em sua eficácia. Claro, estamos (ou estávamos) numa vida que cultuava a performance e a excelência como seu valor maior. Quando algo passa a ser ineficaz, merece a vala comum da exclusão. Por que manter algo que não resolve meu problema, que não me apoia no que poderia me apoiar, e que me dá ainda mais trabalho e complexidade para a minha vida? O que fazer com esta mensalidade que poderia ser revertida para outras células da planilha de custos da família?

Uma escola é uma comunidade de aprendizagem, que nasce de um projeto de construir saber. Há gerações e gerações de educadores e funcionários de secretaria, limpeza e segurança fazendo acontecer este projeto no dia-a-dia, dando vida àquelas paredes aparentemente inertes. Uma escola é uma história que se pode contar a partir de muitas vidas, de inúmeras cenas de angústia e resiliência, de desencontro e profundo laço entre pessoas que ali a habitaram ao longo dos anos em que estiveram estudando. Uma escola é uma ponte entre o mundo que já existiu e as vidas que se capacitam para fazer outro mundo acontecer. Uma escola é parte inerente de um país que se quer fazer brotar, sobretudo em momentos como este que vivemos. Uma escola tem professoras e professores que sobrevivem aos salários, tem funcionários que dependem daquela renda para sobreviver. Uma escola tem alma. Tudo isso está em risco também nesta pandemia. Uma das tragédias que podemos viver é o esfarelamento das escolas particulares de nosso país. Com uma diferença: se na pandemia os idosos são o grupo de risco, nas escolas o risco maior de morte está na educação infantil. Já estamos vendo inúmeras escolas infantis fecharem as portas, e mal começamos a travessia do isolamento social imposto pelo senhor coronavírus.

Claro que você que me lê pode ser uma mãe ou pai que tem seu filho em escola pública. Se este for o seu caso, a sua tarefa continuará sendo estar atento para valorizar cada vez mais o direito das crianças brasileiras terem o direito à escola pública de qualidade. Sei que você também pode estar em dificuldades financeiras, por trabalhar num setor da economia afetado pela pandemia, por ter perdido o seu trabalho ou por ter tido redução do salário. Neste caso, se você tem filhos na escola particular, converse com os responsáveis e negocie novos valores possíveis para sua nova realidade familiar. Mas se você tiver condição de manter o pagamento da mensalidade do seu filho, faça isso. Pagar a escola significa esperançar a continuidade daquele projeto pedagógico, apoiar a sustentabilidade das professoras e funcionárias, e poder ser parte da construção de uma comunidade que apoia uma bela causa. Você e seu filho poderão crescer com isso. Juntos, vão participar de um projeto solidário em torno da causa da perpetuação de um lugar de fazer futuros acontecerem. Vocês poderão contar esta história, orgulhosos, da vida que pôde acontecer, cada um fazendo o seu possível, para a escola passar por esta provação e continuar viva.

Muitos dizemos que o futuro de nosso país passa necessariamente pela educação. É hora de fazermos desta fala um ato presente, uma força-tarefa que trazemos como chamamento destes tempos estranhos. Há mortes evitáveis na pandemia, e a morte da escola é uma delas. Junto com uma escola morta, há lutos dolorosíssimos. E junto com a escola que permanece depois da pandemia, há histórias para serem contadas de resiliência comunitária, de um laço inédito que se forma na classe média brasileira que costumava viver nos prédios sem conhecer o vizinho do lado.

Eu prefiro o lado da existência resistente. Já que será inevitável habitar um mundo novo e cheio de desafios, que a escola de nossos filhos possa permanecer viva, e aberta para as transformações que serão igualmente necessárias em sua forma e conteúdo. Eu prefiro o lado do abraço à escola, em família, e faço a você este convite. Organize conversas nos grupos de mães e pais, sobre como a escola dos seus filhos pode ser cuidada. Ela agora é um dos grupos de risco, que não merece ficar esquecida enquanto tenta sobreviver ao desafio inimaginável de ser descartável a muitos de nossos olhos.

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